sexta-feira, 28 de março de 2014

Nem biológico, nem social: é político

Grandes debates tem sido travados sobre os mais diversos assuntos por pessoas partidárias de explicações mais ligadas à Biologia (e demais áreas afins) e pessoas mais ligadas às Ciências Sociais (ou Humanas, de um modo geral). Recentemente me meti numa discussão sobre trocar o dia pela noite: seria esse um modo de vida anti-natural ou seria mais um passo na evolução? Confesso que esse tema pouco me importa, na realidade. Para os fins desse post, utilizarei como fio condutor um tema mais robusto do ponto de vista das possibilidades de análise: a (homo)sexualidade.

Antes de mais nada, pontuo que as variadas formas de explicação sobre o mundo (as verdades, ou as crenças, dá no mesmo) coexistem. Longe de mim querer retomar o evolucionismo comtiano. A ordem dos sistemas de legitimação das verdades a ser exposta é lógica, não necessariamente condiz com a história e certamemte não representa qualquer "evolução".

Isto posto, começo por uma forma de explicação que não aparece no título do post, mas é importantíssima: a religião. É sabido que por todo o mundo existe uma forte relação entre homofobia e cristianismo. Deve-se explicitar: muitas pessoas cristãs encontram no cristianismo a justificação da homofobia. Por muito tempo, inclusive, eu imaginava que posicionamentos "anti-aborto" e anti-homossexualide eram decorrentes das religiões, especialmente as cristãs. Num debate sobre direitos reprodutivos uma colega me apontou: se o posicionamento contra a descriminalização do aborto estivesse inextrincavelmente ligado à religião seria impossível a existência do movimento Católicas pelo direito de decidir, por exemplo. Existe aí algo maior que deve ser pensado: o controle sobre os corpos tidos como femininos encontra diversas justificativas, a religiosa "pró-vida" sendo apenas uma delas. Com a homossexualidade isso se repete: existem pessoas cristãs homossexuais e existem instituições cristãs mais abertas à inclusão de pessoas homossexuais. Inclusive o papa Francisco se mostrou aberto a repensar o posicionamemto do Vaticano em relação à homossexualidade, que até então permanece como "abominação". Ainda, há pessoas cristãs que usam do próprio cristianismo para combater a homofobia, especialmente com concepções de um deus mais amoroso do que punitivo. Todavia, Malafaias e Felicianos parecem ser maioria nesse meio.

Seguindo, temos a ciência. Se é verdade que ela não pôs fim à concepção religiosa (afinal, religiões ainda existem), deve-se admitir que criou um terreno de batalha com a religião no que concerne à legitmidade das explições sobre o mundo. Dizendo de outro modo: há uma disputa sobre o monopólio da produção da verdade. É preciso lembrar que a ciência como verdade na maior parte das vezes exclui as ciências humanas - a não ser que estas usem métodos aproximados aos das ciências "duras". Aqui a briga tem muito a ver com a ideia de neutralidade, e é exatamente a crença nessa neutralidade que confere boa parte da legitimidade, da veracidade, de que goza a ciência. Pois bem, retomando nosso fio condutor podemos pensar que a ideia de "homossexualismo" é uma concepção científica da sexualidade. Homossexualismo era o termo que dotava a prática sexual de caráter médico; uma doença, enfim. Como doença, o "homossexualismo" poderia ser tratado ou curado. Hoje se fala em homossexualidade, e não mais homossexualismo (ao menos "oficialmente"), mas o debate da sexualidade não deixa de flertar com a Biologia e áreas afins, vide a ideia de que se nasce gay ou lésbica (e não dá para mudar) e as eternas buscas pelo gene gay.

Aqui começa o embróglio sobre a sexualidade ser uma determinação da natureza ou uma construção social. A segunda explicação abre mais espaço para a legitimação de identidades não-monossexuais (cito aqui a bissexualidade). O debate entre social e biológico é extenso e, na maior parte das vezes, pouco proveitoso. Já tendo pontuado sobre a via da ciência "dura", faz-se relevante pensar nas possibilidades do construcionismo social. A princípio, voltemos à "cura gay" proposta por certas pessoas ligadas às ciências psi. Admitir que a sexualidade é mera construção social, mero comportamento, abre espaço para a ideia de que esse comportamento pode ser mudado. Afinal, o behaviourismo não morreu. É preciso ter cuidado também com um certo voluntarismo, como se as pessoas simplesmente optassem por essa ou aquela sexualidade, sem nenhuma pressão social. Quando "social" significar maleabilidade irrestrita e "biológico" significar determinação imutável, será preciso dizer que a questão não é nem biológica, nem social: é política.

E que quer dizer afinal a afirmação de que algo é político? Quer dizer que há poder envolvido no assunto. E poder enquanto forma de dominação e controle. Quando se fala em identidades políticas, esse é o tema: o entendimento de que determinado agrupamento de pessoas está sendo dominado em relação a determinado aspecto que as une. Voltando à homossexualidade, é preciso entender que existem diversas vivências e narrativas do que é ser lésbica. Dizer que lésbicas são pessoas com vagina que só se atraem por outras pessoas com vagina e só com essas pessoas se relacionam sexual-afetivamente seria excluir muitas narrativas sobre a lesbianidade. Ainda assim, parar de falar em lesbianidade não parece o caminho. Existe toda uma história de opressão e de resistências das mulheres lésbicas que não pode ser esquecida porque, afinal, a dominação se mantém. O estigma, por exemplo, é algo que recai sobre muitas meninas que não "se assumiram" ou mesmo das que nem são lésbicas. E começa no estigma, vai para a piada e termina em atrocidades como o "estupro corretivo".

Concluindo, nos debates que põem biológico x social é importante ter a noção política da questão (existem interesses que influenciam e/ou determinam certas explicações em favor de um grupo dominante?) e encontrar o meio termo nos extremos. Nem tabula rasa, nem máquinas pré-programadas; somos algo além. Pessoalmente, eu gosto bastante da resposta do antropólogo Marshall Sahlins para o embate natureza x cultura: a natureza diz o que a cultura não pode fazer.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Você vai acabar com a festa?

É sempre ruim ser a pessoa chata do grupinho. É um horror ser a pessoa que estraga a conversa. O legal é manter a comunicação, fazer com que as pessoas deem boas risadas e se sintam bem. Legal é manter o tom ameno da conversação, prezando pelo consenso - ou, no máximo, pelas discordâncias cordiais. Se no meio do caminho da sociabilidade descontraída tem uma pedra, uma crítica mais contundente ou mesmo uma pessoa se sentindo ofendida, é preciso que alguém tire a pedra do caminho, senão à força, muitas vezes usando do clássico:
Do documentário "O riso dos outros"
No meio do caminho de todo esse carpe diem tinha uma luta anti-opressiva. A diversão despreocupada se dá através do que está à mão e o que está à mão, na maior parte das vezes, é a tradição. Não é à toa que certa vez Laerte tenha comentado sobre a dificuldade de o humor ser revolucionário, uma vez que o gatilho para o riso se faz com o que já está estabelecido. De fato, comentar sobre a feiura da Globeleza ou das gordurinhas das passistas parece uma forma bacana de puxar papo, de jogar conversa fora. Se surgir uma piada de gay no meio, todo mundo ri, afinal, tem que ter bom humor, né? Bem... não. Quando se trata da reiteração de discursos opressivos, ter bom humor não é suficiente e discordar é preciso. E se você aponta o problema, acaba pagando de pessoa chata, mau humorada, que não sabe brincar e que se preocupa de mais. Por isso, para não acabar com uma imagem ruim, para não acabar com a festa, muita gente ri junto da piada depreciativa de pessoas deficientes - ou se não ri, se não concorda, se não incita, se cala. Isso precisa parar.
Buffy Transfeminista vem dizer o óbvio, porque nunca é o suficiente
É preciso que nos posicionemos frente a discursos opressivos, não porque isso vai acabar imediatamente com a opressão, ou vai fazer a pessoa mudar de ideia, mas porque é preciso rachar o consenso. Quando meio mundo (re)faz a piada da travesti enganadora de homens e fica por isso, parece que é certo. Parece que é normal. Parece que pode. Parece que não tem problema. E tem. Muito. Do mais direto: ofender a uma travesti. Ao mais sutil: se somar a tantos outros discursos que zombam e desumanizam as travestis, construindo uma tradição transfóbica. Quer dizer, o nosso silêncio quando discursos opressivos aparecem acaba sendo nosso aval. Se ninguém discordou quando eu disse que a travesti engana homens é porque eu estou sendo legal e ninguém discorda de mim, né? Não! E esse é o ponto. Nos sentimos sós para denunciar as opressões normalizadas, mas não lembramos que se eu por vezes me calo, se você por vezes se cala, se muita gente por vezes se cala, isso quer dizer que ainda que ninguém tenha questionado, muita gente seja contra esse tipo de zombaria. E é preciso questionar e contrapor porque, lembro aqui o óbvio: as pessoas pensam. E elas podem pensar contra o "consenso". Podem inclusive refletir sobre o assunto e mudar de opinião.
"Não alimente os trolls. Não responda a esse tópico, deixe-o cair até o fundo ou ser fechado."
É fato que muitas vezes as pessoas que incorrem em discursos opressivos, quando questionadas, começam a bradar coisas como "mas é a minha opinião!" e "hoje em dia tudo é preconceito, nossa!", isso quando não partem para xingamentos, sem que haja muita possibilidade de diálogo. Ainda assim, a política de "não alimente os trolls" não é eficiente. Quer dizer, é válido quando pensamos em autopreservação. Mas quando falamos em geração de mudança, em despertar de consciência, deixar a discordância de lado não é profícuo. Quando não questionamos, o que vinha sendo dito ou praticado é tido como correto e verdadeiro. Isso geralmente se dá: 1) porque são muitas as pessoas falando/fazendo coisas confluentes; 2) porque as pessoas falando/fazendo essas determinadas coisas tem mais legitimidade; 3) porque o que essas pessoas estão falando/fazendo é amplamente aceito, é hegemônico. Questionar é, então, colocar a hegemonia em xeque. E aqui resgato uma reflexão da Hannah Arendt sobre a banalidade do mal. As  piores atrocidades (e ela fala isso enquanto judia alemã que sofreu com o nazismo) são cometidas por quem estava apenas seguindo as regras. Arendt fez a cobertura do julgamento de Adolf Eichmman (tenente-coronel da SS que possibilitou o encaminhamento das pessoas para os campos de concentração) e ficou bastante surpresa ao perceber que Eichmann não era o monstro que ela imaginara - ele era surpreendentemente normal. Eichmann não odiava pessoas judias, nem tinha qualquer paixão pela carnificina, ele apenas seguia as ordens. Para Arendt, a falta de "pensamento", isto é, pensamento crítico, reflexão, questionamento das coisas é o que constitui a banalidade do mal. Em resumo: as pessoas não fazem o mal porque elas são doentes ou monstruosas, não fazem o mal porque tem paixão pela maldade; fazem o mal porque estão preocupadas em fazer as coisas "certas" sem questioná-las. Retomando a questão dos trolls, argumento aqui que é preciso questionar essas pessoas para apresentar alternativas não-opressivas de entendimento do mundo. Porque o cara que estupra não é um demônio, é um cara que cresceu ouvindo que para mulheres "não" quer dizer "sim" e que foi exposto sua vida inteira a piadas que dizem que estuprar mulher feia é lhe fazer um favor. Em suma, discutir com pessoas que incorrem em discursos e feitos opressivos é possibilitar com que 1) outras pessoas que pensam como você sintam-se encorajadas a também reagir; 2) a pessoa que falou/fez algo opressivo possa pensar e mudar de opinião, ou pelo menos perceber que aquilo não é unânime.
"Os Beastie Boys lutaram e provavelmente morreram pelo meu direito de festejar, então..."
Realmente, questionar discursos e feitos opressivos pode ser acabar com o clima da festa, da diversão. Criticar uma música, uma marchinha ou uma prática festiva é, de certo modo, acabar com a tradição. Temos que ter em mente, aqui, que nossa tradição foi construída pelo massacre de muitos dos grupos que estavam por baixo, bem como pelo esmagamento de suas culturas. E muitas de nossas festas são tradicionais no pior sentido da palavra: na conservação de práticas e símbolos opressivos. Então, é preciso acabar com a festa nesse sentido. Temos que interromper a folia das opressões, porque ela sistematicamente afasta ou machuca muitas pessoas. A diversão despreocupada é de quem, afinal? Certamente não da travesti que, se caso se relacionar com um homem durante o Carnaval (e não só!) pode ser violentada por tê-lo "enganado". Só criando essa sensibilização nas pessoas, nos mais diversos ambientes é possível produzir mudança. Obviamente mudança não é só a sucessão de críticas, mas mesmo a construção de "novas culturas". Nós podemos fazer outra festa, uma festa que resgate tradições que foram apagadas pelos grupos dominantes e que produza criações inovadoras. Podemos criar novas músicas, novas danças, novas fantasias. Comecemos trocando o "dói, um tapinha não dói" pelo "minha buceta é o poder". Ou ainda o "Ô Silvia, piranha!!!" por um "Puta é aquela que se dá pra quem se dá sem o seu / Aval misógino, mas meu corpo é meu". E assim sigamos. Questionando e construindo culturas não-opressivas. E você, nesse Carnaval vai acabar com a festa?