quinta-feira, 31 de julho de 2014

Amor livre não é amor liberal

Relendo o outro post sobre amor livre e pensando em questionamentos sobre o tema que surgiram numa roda de conversa, além dos que tenho visto pela internet, resolvi tentar delinear melhor o que entendo por "amor livre". A começar, devo dizer que me agrada a expressão (em detrimento de outras como poliamor e relações livres) porque tanto "amor" quanto "livre" deixam certo espaço para a elaboração de novos significados. E especialmente porque tocam nos dois pontos cruciais do debate: amor e liberdade.
ah, o poder...
Como enxergo as coisas, antes de mais nada amor livre é um posicionamento político. Político num sentido mais geral, mais difuso, mas que também tem relações com a Política com P maiúsculo. Não aponto o dedo para tais e tais relações específicas, nem tento moldar o conceito pelas minhas relações (ainda que isso seja, em certo sentido, inescapável). Pensar o amor livre como posicionamento político é pensar que vamos discutir para além do eu - ou mesmo quando formos discutir o eu, discutiremos suas implicações políticas. Esse posicionamento só faz sentido, afinal, porque se remete ao todo, a uma mudança estrutural. Pode o amor mudar o mundo?
será mesmo?
Termino o post anterior dizendo que não há possibilidades de um amor realmente livre sem uma luta interseccional. E o título desse post é exatamente "amor livre não é amor liberal". Se antes minha ênfase era na libertação do amor, proponho questionar agora o que pensamos por liberdade. Oras, como vi muita gente pontuando de forma bastante acertada, a mera saciação do prazer (especialmente para homens) não muda muita coisa em relação à Monogamia. Monogamia sempre pressupôs traição, efetivamente a masculina. A vadiagem masculina é absurdamente incentivada no nosso projeto heteropatriarcal de sociedade. Até que ponto uma proposta de mudança afetivo-sexual que apregoa pegação generalizada pode ser um projeto revolucionário?
muito subversivo... ou não
Podemos pensar aqui em pessoas que se encontraram em relacionamentos abusivos. Pessoas vítimas de estupro. Tragamos à tona a reiteração secular da figura da "mulata" como aquela com a qual só se deve ter relações sexuais eventuais. Isso sem contar qualquer sujeito tido como abjeto, de pessoas gordas a pessoas trans, passando inclusive por pessoas deficientes. Qual o sentido de propor a essas pessoas que saiam a fazer pegações? Que não se envolvam profundamente emocionalmente? A partir de que lugar dizemos que essas pessoas devem se "libertar" do amor? Isso tudo se complica ainda mais quando percebemos que concretamente círculos RLi/poliamor/amor livre apresentam pouca diversidade.
além do amor, o Estado
Amor livre não pode ser amor liberal porque senão não se põe como um verdadeiro contraponto à opressiva instituição que é a Monogamia. É preciso construir um novo amor que se paute numa liberdade que não seja a liberdade negativa do liberalismo, que só diz que todo mundo pode tudo, desde que consentido. Ter a liberdade de escolher é importantíssimo, mas não é suficiente, não para quem tem muitas outras correntes das quais se libertar. A mera satisfação do desejo sem a mudança da realidade concreta não difere nada do individualismo que o capitalismo hoje nos propõe (ou impõe, para ser mais preciso).
revolução só se faz com amor. e não há amor sem revolução.
Uma proposta realmente revolucionária de amor livre parte deste enquanto um posicionamento político que tem em seu horizonte um novo projeto de liberdade. Mais do que liberdade para escolher, é preciso que haja possibilidades concretas - e, porque não: materiais - para tais escolhas. Liberdade é sempre o tema da política, não se deixem enganar. É preciso que se ponha em pauta, todavia, a seguinte questão: todas as pessoas, em sua diversidade, tem igual liberdade para escolher? Amor livre é um pontapé direto na cara da Monogamia enquanto instituição e todas as opressões que ela institucionaliza. Do direito à herança ao heterossexismo, passando pela solidão das mulheres negras, a Monogamia anda de mãos dadas com os diversos sistemas de opressão: reiterando-os, acentuando-os. É preciso que sejamos livres para amar além do amor. Mas realmente livres, igualmente livres.