sábado, 13 de dezembro de 2014

Politizar o veganismo

O termo "veganismo"  tem sido utilizado majoritariamente como asbtenção pessoal de produtos de origem animal. Muitas vezes ainda se associa a ideia de veganismo a determinada crença, determinada concepção sobre energia, espírito, corpo etc. Não podemos correlacionar veganismo a nenhuma vertente religiosa/espiritual, não se falamos deste enquanto um movimento social. Ademais, no bojo de movimentações pró-sustentabilidade o veganismo tem se mostrado uma prática extremamente individualista. Há algo herdado do voluntarismo (um prato cheio para o modelo liberal de sociedade) que faz com que pensemos no veganismo unicamente como mudança de si na relação com os animais. Não é suficiente, precisamos ir além.
"coma os seus vegetaaaaaaaaais"
Politizar o veganismo significa algumas coisas. Politizar o veganismo é inseri-lo no seio de debates sobre raça, classe, gênero, dentre outras categorias que estabelecem determinadas relações de poder em nossa sociedade. É também pensar no caráter coletivo do veganismo, isto é: não faz sentido que eu seja "100% vegano" e todas as outras pessoas não o sejam. É ainda tomar as relações sociais em sua totalidade, levando em conta processos e relações de produção. Por fim, politizar o veganismo tem um caráter republicano: temos a obrigação de trazer o veganismo para dentro das estruturas dos processos de tomada de decisão. Em resumo, é preciso que se diga de uma vez por todas: ou o veganismo se politiza ou não vale de nada.
libertação animal * libertação humana
Antes de mais nada temos que definir do que estamos falando. Veganismo não é vegetarianismo, ou seja, veganismo não é dieta.  Eu costumava dizer que veganismo é a tentativa constante de se livrar de tudo o que provém de exploração e morte de animais. O que é acertado, se pensarmos veganismo como prática individual. Veja que essa asserção, além de individualista, é negativa: para ser vegan basta não fazer alguma coisa. Uma noção politizada de veganismo é, necessariamente, coletiva e ativa. Proponho definirmos veganismo, então, como luta pela libertação animal. Com base nessa definição podemos prosseguir para a explicação dos quatro parâmetros de politização do veganismo.
Em primeiro lugar uma abordagem interseccional (que relaciona categorias como classe, gênero, raça, sexualidade, nacionalidade e tantas outras) deve ser o ponto de partida para nossas discussões. Tomada como pedra de torque, a insterseccionalidade nos mostra que pensar o veganismo de maneira individualista é, antes de tudo, promover desigualdades existentes em nossa sociedade. Tem-se falado muito dentro do movimento que veganismo é também libertar seres humanos. Porém não podemos parar nas expressões mais evidentes das opressões. É opressivo também quando se ataca diretamente religiões de matriz afro-brasileira em nome do veganismo. É opressivo quando eu, do auge da minha branquitude classe média universitária, aponto em pessoas pretas, pobres e periféricas como elas são más. Isso não quer dizer que pessoas negras e/ou pobres são menos capazes de serem veganas. Quer dizer que estas pessoas tem que se livrar de grilhões que eu nunca tive até adentrar o veganismo. Quer dizer que algumas destas pessoas não tem o mesmo acesso que eu tive a informações para se tornarem veganas (e não, ter "tudo na internet" não é suficiente, há linguagens e ambientes de convivência que facilitam ou dificultam o acesso de uma pessoa ou outra às informações, dependendo de seu local na estrutura social). Nada disso quer dizer, todavia, que devemos abandonar o veganismo, mas, ao contrário, tornar o veganismo interseccional. Devemos repensar nossa luta específica e ajudar no combate das diversas opressões. Ainda sobre esse tópico vale a pena conferir as relações entre sexismo e exploração animal trazidas pela autora Carol J. Adams em A política sexual da carne.
"não sou assassina. meramente previno indivíduos gananciosos de espoliarem o planeta."
Seguindo o argumento, postulemos que o veganismo é luta coletiva, e não individual. A libertação animal só será atingida quando os seres humanos pararem de explorar animais. Eu abdicar de produtos de origem animal não é suficiente. Nosso papel, enquanto indivíduos, tem a ver muito mais com a coletivização do veganismo. Precisamos criar as possibilidades para que as pessoas abdiquem dos produtos da exploração animal. Isso significa que temos que difundir informações, mas não só. Significa que devemos lutar para que as diferentes pessoas tenham igual acesso a essa abdicação dentro de suas condições materiais concretas. Neste ponto é importante tecer uma crítica contundente à elitização do veganismo. Elitização que não corresponde apenas ao alto preço de produtos com o selo oficial de "vegan", mas também a alternativas veganas de estilos de vida que demandam muito tempo. Numa sociedade capitalista tempo é, sim, um bem valioso e tempo livre um bem desigualmente distribuído. Coletivizar o veganismo passa por coletivizar os diversos bens (materiais e simbólicos) por meio dos quais se pode acessar o veganismo. Coletivizar o veganismo significa exatamente centralizar como principal pauta do movimento a difusão universal da luta pela libertação animal. É preciso que todas as pessoas lutem contra a exploração animal. Chegamos aqui a um embate entre relativismo e mudança social, sobre o qual não pretendo tecer muitos comentários neste momento, somente que em vez de se desistir do veganismo precisamos ouvir perspectivas veganas desde os mais variados locais de fala - o que dizem sobre o assunto os candomblecistas? e as feministas islâmicas?

Até aqui compreendemos que as relações entre seres humanos são demasiado complexas e que em vez de reduzir esta complexidade devemos partir dela em nossa luta pela libertação animal. Para além da adesão do movimento há o próprio enfoque de combate do movimento. Quero dizer, o veganismo possui determinadas pautas - em geral dentro da relação consumidor-produto - que devem ser postas em cheque, ou, ao menos, descentralizadas. Não é suficiente fazer boicotes quando o conceito de "produto vegano" não leva em conta questões como o uso de agrotóxicos. Não tanto pela questão da saúde da pessoa consumidora, mas pelo modo como os agrotóxicos afetam diversos animais e também os produtores. Agrotóxicos são um ponto crítico, mas olhemos para toda a estruturação do agronegócio. Criemos um ponto de diálogo entre veganismo e agroecologia. Não podemos falar em produção vegana quando os elementos dessa produção (ingredientes, máquinas, espaço) provêm, ainda que indiretamente, da exploração animal e mesmo humana. Politizar o veganismo é refletir desde um veganismo sistêmico, isto é, que leva em conta dois aspectos: a exploração promovida pelo sistema capitalista e o emaranhado de relações predatórias de produção. Sem uma reflexão sistêmica de nossa luta caímos no risco de achar que estamos isentos de participação em sistemas de dominação.
100%?
O último parâmetro de politização tem bastante a ver com o que geralmente se entende como "política". Falo aqui de políticas institucionalizadas. Na construção de nossas diversas lutas não podemos esquecer que políticas institucionais são, por vezes, as formas mais eficientes de difusão. Quando vivemos sob um Estado, por exemplo, estamos sujeitos às leis estabelecidas dentro daquele Estado. Obviamente devemos questionar tanto a eficácia quanto o processo de elaboração das leis. Devemos questionar também sistemas eleitorais e as pessoas que ocupam os cargos de poder. Questionemos também o próprio Estado. Lutar contra o Estado, em minha visão, não é só lutar por fora do Estado, mas também ocupá-lo. Em vez de um veganismo só de abstenções, façamos também um veganismo ativo: adentremos os espaços de tomada de decisão que influem diretamente sobre a vida coletiva para difundir a luta pela libertação animal. Criemos leis que proíbam a realização de testes em animais, façamos o restaurante de nossas universidades e os refeitórios das escolas adotarem opções vegetarianas de refeições, enfim, exploremos da política institucionalizada (não só a estatal, ressalte-se) o que ela tem de mais poderoso: seu alcance na redefinição de condições materiais.

sobre a centralidade da carne
Sem encerrar o debate, faço agora uma defesa do caráter micropolítico do veganismo. Chamo de "micropolítico" para não confundir com a perspectiva individualista que venho criticando ao longo deste texto. Alguns pontos me levam a pensar que o foco no vegetarianismo estrito como dieta faz algum sentido. Penso aqui no lugar que a alimentação ocupa em nosso sistema simbólico, sendo muitas vezes a parte mais tensa do debate sobre os limites entre natureza em cultura. É sobre a naturalização da concepção do ser humano como ser onívoro que são erigidos os pilares de todo o sistema de dominação (e reafirmação ideológica da dominação) de humanos sobre animais. Além disso, fazemos certa associação entre o que consumimos (especialmente o que adentra nossos corpos) e o que somos. É neste sentido que parar de comer carne se torna uma postura ética e "micropolítica". Isso é importante, acho que acaba se tornando uma forma de contrapor a base de sustentação simbólica de toda a exploração animal. É importante, mas não suficiente. Por todos os motivos que aqui enumerei  e por outros tantos. É necessário politizar o veganismo.