quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Política e polarizações num Brasil em crise


Um elemento constitutivo da política é a delimitação de amigos e inimigos, a divisão da linha entre nós e eles. Serve para a paz democrática, serve para a guerra sangrenta. Nesse sentido, política é sobre disputa. As disputas políticas, entretanto, não estão dadas, antes precisam ser constituídas enquanto tais. Estabelecer polarizações é um exercício constante e tenso para quem se propõe a fazer política (dentro ou fora do Estado).
amigas e rivais
Consciente disso, Luiza Erundina disse que Marina Silva deseducava a sociedade ao não se afirmar de esquerda ou de direita. Não se governa para frente apenas. Ainda assim, Marina tentava construir outra polarização: nova política x velha política. Até hoje é difícil entender quais eram os termos concretos dessa polarização, que soa tão óbvia quanto artificial. No fim, quando veio a hora da polarização eleitoral, Marina escolheu um lado. Cito a querela entre Erundina e Marina nas eleições presidenciais de 2014 (que em certo momento as uniu na candidatura do PSB e as separou no segundo turno) porque concordo em partes com as duas. Com Erundina, pois sigo o argumento de que descartar a polarização esquerda x direita é encobrir outras escolhas. Com Marina, porque também penso que a polarização PT x PSBD prejudica o Brasil (essa é a posição de Domenico de Masi).
cher sobre lênin sem cabeça

Desenrolemos. Esquerda e direita, enquanto horizontes normativos, enquanto polos ideológicos, são combinações de princípios e/ou pautas capazes de guiar tomadas de decisão. Só faz sentido que política seja sobre disputa se for também sobre a possibilidade de escolha de diferentes formas de ação - caso contrário, de que serviria a disputa? É verdade que em diferentes momentos e por diferentes perspectivas os termos da disputa podem ser entendidos de maneiras específicas (saquaremas e luzias, no Brasil Império; machista e feminista, nos termos de gênero). Se a confusão existe e não pode ser solucionada simplesmente numa única dimensão (como a chegada ao socialismo), nem abdicada (pois algum caminho deverá ser seguido), talvez a melhor saída seja definir de forma ao mesmo tempo normativa e aberta o que é ser de esquerda: lutar contra todas as formas de dominação, organizadas de maneira específica pelo capitalismo monopolista. 

Desenrolando ainda mais: nem de um lado, nem de outro devem as polarizações partidárias ser automaticamente igualadas às polarizações políticas. Aqui o debate é mais palpável, mas ainda mais perigoso. Quando falamos em polarização partidária falamos sobre o Estado, falamos ainda sobre elites políticas capazes de mobilizar máquinas de angariar votos (quase sempre por meio de investimento de muito dinheiro). Essas elites são expressões parciais do embate entre duas estruturas mais ou menos maleáveis e mais ou menos interligadas: o Estado e a sociedade. Nem toda polarização partidária esgota as polarizações políticas no seio de uma sociedade.
essa família muito unida...

Enrolando tudo novo... a breve democracia brasileira foi marcada, na maior parte de sua duração, pela disputa entre o PT e o PSDB. E assim nos organizamos enquanto Estado e nação. De um modo geral as demandas à esquerda foram encaixadas no polo vermelho e as demandas à direita no polo azul. Consolidações de políticas estatais e reorganizações sociais depois, além das taxas pagas à governabilidade, as fronteiras entre nossa polarização política e partidária estão borradas - essa é a gênese da crise política. À direita do PSBD temos atores como Bolsonaro, MBL e Eduardo Cunha - que, vejam só, é da base aliada do governo de esquerda! Falando ainda em aliados, dois dos grandes nomes do PMDB que apoiam o governo (de esquerda!) contra o impeachment são Renan Calheiros e Kátia Abreu.

Sucessivamente a esquerda, sob diversos nomes, tem apoiado os governos petistas em sua manutenção no poder. Óbvio, o que seria de nós se a direita fosse vitoriosa?! O que parece menos óbvio é quem é esquerda e quem é direita a esta altura - porque esquerda e direita são definições difíceis, mas principalmente porque os partidos estão retalhados e rifados (cada um compra a parte que puder, com o a moeda que tiver). Cede aqui, governa ali. E cada guinada à esquerda do governo federal se consolida como uma promessa a ser cumprida em parcelas a perder de vista (a radicalização sinalizada em 2014 entrou 2015 com Joaquim Levy e o pós-impeachment novamente promete, mas é certamente um pós-Levy ainda com ajuste fiscal).

Positivamente somos pouco capazes de constituir uma identidade própria, enquanto esquerda brasileira. Delimitar um “nós” só é fácil para quem exclui sem sofrer. Todavia, em meio à crise ganhamos um grande inimigo. Cunha é contra as mulheres, contra a população LGBT, contra indígenas, contra trabalhadoras/es, contra a juventude negra. Assim vamos descobrindo que somos mulheres, somos LGBT, somos indígenas, somos trabalhadoras/es, somos juventude negra... e cada derrota política desses grupos é uma derrota nossa. Somos todas/os contra Cunha. Somos a esquerda brasileira. E nós somos muito mais do que um partido, uma coligação ou um governo. Precisamos descobrir isso antes de nos digladiarmos pela manutenção de quaisquer elites no poder (chegando a absurdos como petralhas x coxinhas). Busquemos uma nova política de esquerda.             

domingo, 20 de setembro de 2015

Frankfurt em chamas

Imagine você tendo assistido, ainda criança, ao desenrolar da Primeira Guerra Mundial. Imagine agora que você é um alemão (de origem judia) observando a ascensão do nazismo e o início da Segunda Guerra Mundial. Pelo rádio chegam as palavras do Führer a cada domicílio. E a suástica se multiplica pelas ruas. É nesse clima que Theodor Adorno e Max Horkheimer escrevem (e publicam) "A Dialética do Esclarecimento", em 1944. Desde então "Indústria cultural" tem sido expressão recorrente para designar o esvaziamento de conteúdo das relações sociais. O objetivo desse texto será uma crítica a esse conceito, tanto na lógica interna à obra original, como nos usos corriqueiros desta abordagem.
De saída é importante pontuar que existe uma indústria cultural; isso é inegável. Existe uma produção em larga escala de "bens culturais" (consideremos aqui "cultura" num sentido mais restrito que o concebido pela Antropologia): filmes saem aos montes de Hollywood, existe todo um mercado literário que escoa gêneros como auto-ajuda e trilogias infanto-juvenis, sem contar com as grandes gravadoras em busca da batida perfeita. Existem os empresários, os conglomerados, a produção racionalizada, o estabelecimento de metas, a adequação dos produtos ao mercado e assim por diante. Se alguém não se convenceu ainda de que há uma indústria cultural operante recomendo esse Profissão Repórter sobre como a indústria do sertanejo investe milhões na produção de carreiras de sucesso. Se de fato existe uma indústria cultural, qual é o problema de Adorno e Horkheimer?
No texto que consolidou a expressão os autores adotam, na maior parte do tempo, um tom nihilista. Você termina a leitura sem saber muito bem o que fazer, afinal todas as possibilidades de emancipação estão em franco processo de degradação no curso do capitalismo tardio. Parece uma crítica rasa, mas é o início do descompasso com o próprio materialismo histórico dialético. Se não há possibilidade de mudança a partir das condições materiais de uma época, não há nem dialética, nem história. Se a razão está fadada à captura pela instumentalização própria do capitalismo, não pode haver consciência de classe; logo não pode haver revolução. Jürgen Habermas, um colega frankfurtiano da dupla supracitada, tenta separar o joio do trigo, dizendo que há razão instrumental, mas há também razão comunicativa. Hannah Arendt também acredita que a reflexão pode enfrentar a banalidade do mal. Todavia na década de 40 nossos companheiros acreditavam que a propaganda havia destruído o raciocínio. Afinal, que dizer de uma juventude que se deixava seduzir por Hitler e pelo jazz?
todo interesse é capitalizável
Se a associação de jazz ao nazismo soou estranha, podemos passar ao próximo ponto. Adorno concebe muito bem que a indústria cultural não só produz afirmações explícitas da conservação da realidade, mas sua própria crítica. Pode-se comprar um pacote (ticket, no original) conservador, como um pacote revolucionário. De algum modo, entretanto, o autor parece não perceber que seu desdém pelo jazz e pelo gosto das pessoas não o deixariam fora dessa indústria. Que seja dito que por Adorno não apresentar saídas fica difícil saber exatamente o que ele defende. O uso que se faz costumeiramente (e que é possível) do conceito de indústria cultural é sua contraposição como constituição de uma vanguarda (intelectual, cultural, política). Não é por menos que o esquerdismo se tornou um estilo de vida (não ausentado a crítica aos partidos de esquerda que compram essas ideias, obviamente). No Brasil isso se cristaliza com a produção de ícones da boa cultura (Tom Jobim, Toquinho e companhia) ou da contracultura (vide Chico e Caetano), dos bons filmes, dos livros clássicos. Se levarmos a sério o tema que Adorno levanta, ou pensarmos na análise de Bourdieu de como os gostos produzem distinção social, a constituição de uma vanguarda, que conseguiria fazer a crítica certa, não é menos ideológica. 
Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo, Salvador Dalí, 1943
Adorno é o Schumpeter da esquerda, com implicações semelhantes. Publicado dois anos antes do livro sobre esclarecimento, "Capitalismo, Socialismo e Democracia" era um ataque direto de Joseph Schumpeter à razão (ao menos a razão para além do âmbito econômico). Sua análise, tendo também a propaganda de fundo, é de que as massas são influenciáveis e muitas vezes não conseguem escolher os caminhos certos para chegar ao que querem. Para ele, pensar que o fundamento da democracia é a escolha individual seria um erro; a democracia estaria assentada na competição entre partidos (elites) pelo voto (que é também a única maneira de evitar a tirania). Quando adotamos, seguindo Adorno e Horkheimer, o conceito de indústria cultural apontando para a ideia de que as "massas" são (ou estão fortemente) incapazes de raciocinar, temos apenas dois caminhos: o nada, ou a constituição de elites pensantes. E aí restaria a pergunta: quem decide quem pensa? Quem detém o monopólio da crítica? Como se define o que é verdadeiramente revolucionário e o que não é?
o povo não pensa, eles disseram
É preciso redirecionar a crítica à indústria e torná-la hiper-crítica (sem cair no nihilismo). Precisamos apontar os meios pelos quais a Globo se faz hegemônica no ramo da comunicação. Isso não significa apontar noveleiras como "alienadas" - até porque cabe aqui um rodapé de gênero: o futebol é geralmente deixado de fora da crítica. Ao mesmo tempo, pensar que funk, arrocha e sertanejo não são cultura é tomar os sintomas como a causa do problema - além de ser elitista, na maior parte das vezes. Tomemos nossa cultura (aí sim, no seu sentido antropológico e contraditório) como força motriz da revolução. São os corações pulsantes e as mentes pensantes de um povo que se expressa e resiste a única força capaz de acabar com uma dominação que começa exatamente com a divisão entre quem pensa e quem executa. MC Carol já sabe que Não foi Cabral, Valesca defende que sua buceta é o poder, Igor Kannário diz que é tudo nosso e nada deles, Gaby Amarantos e Dona Onete são de uma tribo valente que lutou e MC Soffia, aos 8 anos, já avisava às meninas pretinhas que elas são rainhas! 
O caminho para a mudança deve começar com a abolição da abordagem auto-centrada que aponta "fascistas" e "coxinhas" e corre para abrigo, como se uma bomba de escárnio pudesse conter o avanço do conservadorismo nesse país. O contrário do esvaziamento das relações sociais não é o distanciamento egoísta que cria bolhas de satisfação, mas o envolvimento comunicativo na realidade tal como ela se apresenta. Não se muda o mundo sem sujar as mãos de realidade; não se mudam opiniões sem contaminar-se do outro. Não adianta atacar propaganda apenas com mais propaganda, porque nesse jogo quem detém o poder (econômico) já ganhou. Devemos fortalecer nossa capacidade de argumentar, nas relações concretas, que essa realidade nos oprime e quem nos oprime tem gênero, raça e classe, assim como interesses bem definidos. Definitivamente, sem diálogo não há dialética.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Ação Coletiva: horizontalidade na prática

Em 11 de junho de 2014 foi eleita a chapa Ação Coletiva para gestão do Diretório Central de Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Poderia ser só mais uma eleição de DCE não fosse um fato novo: desde que se tem registro, essa foi a primeira vitória de uma chapa apartidária para o DCE UFV. Quando apresentado à chapa, um professor que estudou o movimento estudantil (ME) da UFV insistiu para saber se éramos do PCdoB ou do PT (partidos que historicamente disputaram a entidade) - e não só ele, ninguém acreditava. Quem acreditava mantinha algum ceticismo quanto à nossa vitória. Sem suporte partidário ou financeiro: quais eram as chances? Apesar de tudo, vencemos e agora chegamos ao fim da gestão. Apartidarismo e horizontalidade: conseguimos? Cumprimos as propostas? O que foi a Ação Coletiva para o movimento estudantil da UFV? Quais são os desafios atuais? Segue-se um balanço.
Símbolo da Ação Coletiva
Antes de mais nada é preciso contar a história do começo. A gestão 2013-2014 do DCE-UFV (uma coalizão entre PT, PCdoB e Levante Popular da Juventude) definhava em seus últimos meses. Havia um clima de desorganização (mas não desmobilização) do movimento estudantil de forma mais ampla, culminando num enfraquecimento do Conselho de Centros e Diretórios Acadêmicos (CCA). O DCE implodia em disputas internas e não conseguia concretizar propostas e dar suporte ao ME. Começavam as articulações para novas eleições de DCE, CA e DA e a gestão decretou vacância. O sentimento à época (começo de 2014) era de um lamaçal imobilizante. É desse ponto crítico que começa a se delinear a Ação Coletiva. Eu, que era apenas membro do Conselho Universitário (CONSU), participava do CCA e comecei a comentar em tom jocoso com amigas/os (que já haviam participado do ME) que na situação em que se encontravam as coisas, poderíamos montar uma chapa de DCE e ganharíamos as eleições. O que era piada (afinal não sabíamos muito bem o que fazia um DCE) foi ganhando concretude quando mais e mais companheiras/os se empolgavam - apesar de nunca parecer uma possibilidade real. Com o tempo formamos um grupo político composto por pessoas da Articulação Nacional de Estudantes de Ciências Sociais (ANECS-Viçosa), da Comissão de Moradores de Alojamento (CMA), do grupo de diversidade sexual Primavera nos dentes e tantos outros coletivos nos quais estávamos inseridas/os. 
Parte dos membros da chapa (foto tirada durante o Varal Geográfico de 29/05/2014)
"Ação Coletiva" foi a fusão de dois outros nomes. "Da lama ao caos" representaria a saída de um momento de pessimismo no ME da UFV para um recomeço de caos, de potência criativa. Concretamente significou num primeiro instante ter que lutar para que as eleições acontecessem e se dessem da forma mais limpa possível. "Nova visão" tinha a ver com uma forma de fazer movimento estudantil diferente da que víamos no DCE da UFV. No fim, "Ação Coletiva" consistia em uma tentativa de envolver as/os estudantes no ME, tanto individualmente quanto através dos coletivos estudantis, de modo a concretizar propostas, sempre baseando-se em dois princípios: apartidarismo e horizontalidade. Apartidarismo significava a ruptura com os partidos, mas também recusar cartilhas ou decisões exteriores. Horizontalidade era, então, o fundamento da nossa ação: todas as decisões deveriam ser decididas coletivamente, com igual possibilidade de participação de qualquer estudante. "Eu vi que o símbolo de vocês é um A anarquista, vocês são anarquistas?", perguntava um oponente no primeiro debate. Respondemos: "Bem, prezamos pela horizontalidade e combate a todas as formas de dominação... mas fomos quem mais lutou para que as eleições ocorressem e estamos aqui disputando democraticamente uma entidade representativa". 
Kênia Araújo, em foto enviada para a campanha da Ação Coletiva
Fizemos uma campanha interativa e dialógica. Uma esperança começava a emanar de diversas/os estudantes que viam na Ação Coletiva uma possibilidade de se fazer política de uma forma menos pesada, mais próxima. Ainda assim, foi uma disputa difícil contra a chapa F5, organizada pela UJS (PCdoB), especialmente por conta das falcatruas já conhecidas dessa organização. Na contagem de votos uma surpresa: vencemos! Já no primeiro seminário de organização da gestão percebemos que o desafio só havia começado. Era preciso formular um modelo e uma forma concreta de execução, tudo sem votação alguma, somente a partir do consenso. Na prática, o apartidarismo e a horizontalidade representavam tanta liberdade que por vezes não sabíamos como lidar. Não é tarefa simples distinguir o que é liberdade liberal (egoísta) e o que é liberdade de fato emancipatória e coletiva. Esse é o fantasma que assombrou toda a gestão.
Marcha Nico Lopes 2014
De um modo geral as propostas foram cumpridas como se esperava: com ampla participação de estudantes. Sem dúvidas o ponto alto da gestão foi a Nico Lopes 2014. O evento, tradicional do movimento estudantil da UFV, agregou festa e política. Conseguimos convencer a administração da universidade de que a regulação da venda de bebida alcoólica (cerveja) seria mais produtiva do que a proibição total da comercialização e do consumo. E acertamos: na última edição, realizada há mais de um ano, houve proibição total de álcool e houve diversas brigas, depredação do patrimônio, bem como reclamações dos hospitais e das/os trabalhadoras/es (seguranças e enfermeiras/os) - na Nico Lopes 2014 nada, nadinha. Mais de 4 mil pessoas, regulamentação da venda de bebida alcoólica e 7 dias de evento que culminaram numa marcha e num show na mais perfeita harmonia: um golpe no proibicionismo! Ainda, houve o resgate do festival de bandas, promovendo shows gratuitos com premiações para as bandas da região. Uma parceria com a administração da UFV e prefeitura de Viçosa.
Festa de aniversário do grupo de maracatu O Bloco no Porão (vídeo do PMME-UFV).
Ainda em relação às propostas executadas: a implementação da alimentação vegetariana no Restaurante Universitário (RU) da UFV, o retorno completo do Porão (sede política e cultural do ME) e a reativação do Fórum de Combate às Opressões como fórum permanente (composto por coletivos que debatem raça, gênero e sexualidade). Do que ficou por fazer ressalta-se principalmente a formalização de conquistas e direitos e a regularização da situação econômica e legal da entidade. Por fim, duas realizações devem ser mencionadas para explicar a tensão interna durante toda a gestão e especialmente as contradições dos seus momentos finais. A Calourada Unificada terminou a recepção de calouras/os com shows bem organizados, mas passando por cima, em muitos momentos, da construção horizontal e coletiva, tão cativa à Ação Coletiva. O Congresso Estudantil da UFV, por sua vez, demonstrou que o caos (criativo) havia se instaurado: diversos grupos políticos surgiram ou se fortaleceram. Demonstrou também que a gestão dava seus últimos suspiros, incluindo novos membros, mas deixando muitos pelo caminho.
Congresso Estudantil da UFV, 2015
É verdade que a Ação Coletiva envolveu dezenas (talvez centenas!) de estudantes em participações esporádicas durante toda a gestão, em todas as ações. Sem essas pessoas quase nada seria possível. Entretanto fazer acontecer um DCE concretizando propostas gigantescas demanda um nível de organização e de trabalho enorme e ininterrupto. Ao longo do tempo percebemos que havia demandas demais para um pequeno grupo de membros "orgânicos". Era a busca incansável da horizontalidade na coletivização de tarefas e decisões com a formação progressiva (não tanto desejada) de centralizações. Quer pelo conhecimento prévio dos processos, pelo empenho individual e pelo egoísmo, lideranças brotavam - embora nunca com esse nome. No começo da gestão isso era amenizado porque havia muitas "lideranças", que de certa maneira disputavam o poder de tantos lados que não havia bem vetor definitivo, a participação de novos/as militantes era mais fácil. Nos últimos meses de vida muitos membros já haviam deixado a Ação Coletiva (porque formaram, porque perderam interesse, porque se desgastaram etc) e as coisas se complicaram. O ponto máximo da decadência foi quando um membro da gestão se utilizou de táticas machistas para tentar convencer uma companheira de ME a fazer o que ele mandava. Felizmente não conseguiu e foi coibido pela companheira e pela gestão. Esse caso é exemplar dos perigos de uma horizontalidade pueril: sem mecanismos reguladores o movimento depende da boa vontade dos/as participantes. Não é por acaso que as meninas eram minoria na composição da chapa e nas falas durante as reuniões (sem mencionar negros/as). O novo estatuto do DCE UFV, aprovado no Congresso, institui a paridade nas chapas concorrentes à entidade e em suas posições de decisão. Enfim, o que pontuo é que sem mecanismos institucionais organizações podem acabar reféns da instabilidade, insegurança e de ataques à própria coletividade. O que a Ação Coletiva demonstrou, por outro lado, é que a ruptura com institucionalidades (com organização em direções, com partidos e a UNE) abriu espaço para uma política mais criativa e acolhedora.
Shara Narde e Bruna Ramos no ato "Fora Lannes!", organizado pelo ME da UFV
Ação Coletiva foi um sentimento compartilhado de mudança, indignação e engajamento que se criava a cada instante para além dos limites de um Diretório Central. Seus penosos suspiros finais (com tantas rupturas e fogo generalizado) são a prova de que esse modo fraterno (não confundir com homogêneo) de fazer política não cabe em estruturas, nem pode ser dirigido por quem quer que seja. Com todos os erros, percalços e perigos a Ação Coletiva (não enquanto membros da gestão, mas enquanto estudantes partícipes) conseguiu promover uma nova agregação do movimento estudantil da UFV, que pode ser essencial para os coletivos que nunca deixaram de se organizar, para os que se recompuseram, para os que surgiram e surgirão e para uma política que é feita no conflito e se concretiza porque considera todas as pessoas como importantes. Que venham as novas contradições e se fabriquem outras dialéticas. Vida longa ao ME da UFV!

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Até onde vai o marxismo no combate às opressões?

Escrevo esse texto para tentar me resolver com São Marx, procurando seu lugar no século XXI, em especial no entendimento das opressões. Utilizarei gênero, raça e sexualidade em diálogo com classe (ainda que, como ficará evidente, eu descambe para as feministas quase sempre). As classificações dos usos do marxismo são arbitrárias.

que o bom velhinho nos proteja
Primeiro temos o marxismo como classicamente se apresenta: a classe como centralidade, o capitalismo como inimigo. Se o trabalho é a dominação do homem sobre a natureza (o que o constitui como ser humano - o que o liberta), no capitalismo trabalho também é dominação do homem sobre o homem (o que o constitui como explorado - o que o aprisiona). Essa é a contradição fundamental do capitalismo. Assim, constituem-se duas classes antagônicas: a que detém os meios de produção (burguesia) e a que não detém os meios de produção e vende sua força de trabalho (proletariado). Sendo o pólo explorado, o proletariado é a força motriz da revolução que libertará todos os seres humanos (afinal, a dominação do homem sobre o homem aprisiona tanto quem domina, quanto quem é dominado): a derrubada do capitalismo, implementação da transição socialista e chegada ao comunismo. O comunismo é o lugar da liberdade, pois representa o fim da dominação do homem sobre o homem. O que são as opressões nessa visão? Em suma, formas do capitalismo intensificar ou organizar a exploração de classe. As mulheres servem (ao capitalismo) como contribuição para reprodução da força de trabalho (uma vez que cuidam de seus maridos sem receber nada), por isso são relegadas ao doméstico (para interpretações mais cuidadosas indico Christine Delphy e Nancy Fraser). E como se explica a opressão que sofre a população LGBT? Num vídeo muito didático, Amanda Palha, militante trans e comunista, explica como o capitalismo cria sujeitos abjetos, que valem menos no mercado de trabalho. Isso explica como travestis estão, em sua maioria, na prostituição (profissão essa sem regulamentação) ou em trabalhos pauperizados (cita-se geralmente o telemarketing como exemplo). No fim, todas as opressões são formas concretas de realização da luta de classes e, por isso, o foco central das lutas contra as opressões deve ser o fim do capitalismo.

Do outro lado temos o marxismo em forma, mas não em conteúdo. Ou melhor, um materialismo que não se baseia na economia. Penso principalmente em Catherine MacKinnon, quando esta troca os termos da análise marxista para uma feminista. O esquema é: (1) fundamento da condição humana > (2) divisão da sociedade > (3) dominante > (4) dominado > (5) instrumento da dominação. No marxismo clássico, o esquema fica assim: (1) trabalho > (2) classe > (3) burguesia > (4) proletariado > (5) produção. No feminismo, o esquema é: (1) sexualidade > (2) heterossexualidade > (3) homem > (4) mulher > (5) desejo. No caso de raça, cabem aqui teorias que põem o racismo como fundamento de todas as dominações (onde racismo é visto como primeira criação de diferenças entre humanos) e o antirracismo pan-africanista. Por vezes caindo sob a alcunha de pós-marxistas, essas explicações preservam do marxismo o materialismo (no sentido de que a opressão se funda em relações concretas), o estruturalismo (porque a vida social se constitui reproduzindo determinadas estruturas) e a ideia de totalidade (aquela opressão em específico perpassa todas as relações e é fundante), ainda que nem sempre a perspectiva revolucionária. O inimigo é o próprio sistema de dominação em específico (sexismo, racismo, "LGBTfobia").
Num terceiro momento temos o que vou chamar de marxismo acessório (que é a interseccionalidade, na verdade). Digo aqui de uma visão de classe como uma das categorias de opressão. Nessa visão, as opressões funcionam segundo lógicas próprias, produzindo experiências específicas e que se cruzam no meio do caminho. Uma mulher negra sofreria com as consequências do sexismo e com as consequências do racismo. Fosse pobre e periférica ainda, aí mesmo estaria numa encruzilhada das opressões. O cruzamento das opressões não só gera "somas" das opressões, mas opressões específicas. Autoras como Kimberle Crenshaw e Adriana Piscitelli são nomes reconhecidos nas análises interseccionais. O objetivo dessa abordagem é esmiuçar a realidade social buscando entender e solucionar as formas concretas (e portanto específicas) em que se dão as opressões. O marxismo surge aqui como uma explicação relevante, mas não suficiente da dominação (nem mesmo da de classe, que deve levar em conta outras categorias). Os inimigos são vários, provavelmente o inimigo é o próprio poder (o fundamento das dominações).
Cada uma dessas abordagens tem contribuições gigantescas, assim como problemas profundos. O marxismo clássico tem grande papel em mudanças sociais concretas, o que se deve bastante à aliança de teoria e prática (as diversas organizações de esquerda, em especial as partidárias são o meu foco aqui). Todavia, o marxismo tomado dessa maneira apaga (ou subsume) quaisquer desigualdades que não as de classe. Assim, todos os problemas parecem poder ser resolvidos com o bom e velho socialismo. Oras, não me parece que homofobia e misoginia possam ser satisfatoriamente explicadas pela luta de classes. Assassinatos de homossexuais e estupros de mulheres, por exemplo, só podem ser explicados por vias econômicas se deixarmos de lado as especificidades que levam tal atrocidades a acontecer - e que nos levam a questões mais complicadas também: importa a classe de quem estupra? Existe mulher negra burguesa?
O marxismo formal, por outro lado, é excelente para entender as opressões em específico e, mais do que isso, para a organização política, conseguindo elaborar pautas muito bem definidas (vejamos como os feminismos, movimentos LGBT e antirracistas se tornam mais objetivos quando suas análises e, portanto, demandas se tornam "autossuficientes"). Entretanto, se no marxismo clássico classe é o fundamento de toda a dominação, aqui gênero (ou sexo), sexualidade ou raça se tornam as categorias fundantes de todas as clivagens da vida social. De saída temos um problema: não podemos considerar mais de uma categoria como fundante. Vimos isso acima com classe. O feminismo negro, por exemplo, surge numa crítica ferrenha à tomada da categoria mulher como universal/unívoca (ou seja, gênero como uma categoria "pura"), o que apaga as especificidades e necessidades de diversas mulheres.

O marxismo acessório, por fim, tenta (com alguma dificuldade, é verdade, dado o tamanho do empreendimento) responder às críticas ao marxismo formal com análises interseccionais - isto é, análises que consideram como as diversas opressões interagem. Essa perspectiva é importante porque dá visibilidade a diversos grupos que ficam sempre nas frestas: a mulher negra não aparecia de fato nem no antirracismo (que tomava o negro como masculino), nem no feminismo (que tomava a mulher como branca). Assim, movimentos específicos se articulam - vemos surgir grupos de mulheres indígenas, transfeminismos, coletivos LGBT comunistas e assim por diante. Essa polifonia, porém, falha em produzir o que é essencial ao marxismo: uma perspectiva revolucionária concreta. No fim, praticamente todo mundo pode ser categorizado como dominante ou dominado, dependendo das variáveis que tomamos. Para o marxismo clássico, esse é possivelmente o maior problema do pós-estruturalismo (e por vezes do "pós-modernismo").
eis a grande pergunta
É, camaradas, não há resposta fácil. Se correr para revolução armada, acabamos por alvejar quem já está na merda. Se reformamos aqui e ali, de forma lenta, gradual e segura, deixamos muita gente na merda, mas em vias de tirá-las de lá (num futuro longínquo porém "democrático"). Nancy Fraser sugere um socialismo desconstrutivista; Judith Butler sugere subversão. Se é impossível chegar a uma síntese que satisfaça todas as críticas, o que se torna explícito é que o marxismo tem seu lugar nas discussões contemporâneas sobre combate às opressões - nem que seja para ficar ali do lado, cobrando uma proletarização da luta. Creio que seja a hora de deixar a teoria ser informada pela prática, para que novas teorias possam guiar novas práticas. Citando a Jéssica Ipólito: "Eu não quero as raízes, eu quero as flores!". Eu acredito é nos movimentos sociais.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

NEGROS FASCISTAS

 
Uma peça de teatro foi cancelada após pressão do movimento negro contra o uso do blackface. Podemos ler: uma peça foi censurada por um grupo que não gostou do seu conteúdo. E podemos ler: o movimento negro combateu o racismo. As duas coisas aconteceram. O posicionamento que se toma diz respeito mais a suas prioridades do que sobre o acontecido.

Muitos artistas foram logo naquilo que os tocava: o cancelamento de uma peça porque alguém não gostou do que iria ser encenado. Não foi exatamente uma surpresa. O que impressiona é que intelectuais de esquerda tenham chamado de fascismo e censura o cancelamento. Impressona mais, talvez, porque o que se espera de análises de esquerda é que levem em consideração a materialidade.

Chamar de fascismo ou censura o que aconteceu é menos descrever a realidade do que imputar valores sobre o fato. Podemos chamar ocupações do MST de invasões, são duas palavras para o mesmo acontecido. Mas cada uma mostra uma tomada de posicionamento. Ou achamos que o MST fez algo de errado ou achamos que fez justiça. Espera-se que uma análise de esquerda chame de ocupação e veja como justiça porque entende a materialidade do contexto: a reforma agrária não acontece, a concentração de terras é imensa. Invadir (errado) é ocupar (certo). O que numa análise sem contexto aparece como violência, numa análise materialista aparece como justiça.

Fascismo, enquanto história passada, nos remete a Mussolini e de certo modo ao nazismo de Hitler. Dentre aspectos importantes, o controle do Estado (e do exército) foi o que deu a dimensão do fascismo. Na Alemanha o controle do Estado aliado a uma ideologia eugenista deu origem ao holocausto. No presente falamos em "neonazismo" quando grupos de brancos perseguem minorias (politicamente falando) raciais/étnicas. Dizemos que a polícia é fascista quando, por ser braço amardo do Estado, ela atenta contra a população desempoderada - geralmente negra e/ou pobre.

Censura, enquanto experiência histórica, encontramos especialmente durante a ditadura militar no Brasil. De novo: Estado, exército. Usamos "censura" de forma séria quando pessoas despojadas de poderes (políticos e econômicos, especialmente) são impossibilitadas de falar. Tendo a crer que nem defensores liberais da liberdade de expressão tão ferrenhos como Stuart Mill pudessem encarar luta contra discurso de ódio como censura, por exemplo.

Só podemos falar em "fascismo" ou "censura" como ataque ou silenciamento no geral se apagarmos toda a história, todo o contexto, toda a materialidade por trás de tais conceitos. Uma mãe é fascista quando grita com o filho e censora quando o proíbe de falar enquanto há visitas na sala. Aniquilamos, então, ambos os conceitos, porque na verdade eles podem expressar qualquer relação.

Chamar de fascismo e censura a pressão que o movimento negro fez para o cancelamento da peça que utilizaria blackface é esquecer que o racismo existe. O racismo existe, a população negra não controla nem o Estado, nem o exército, nem a polícia. Pessoas negras são as mais pobres e as mais assassinadas nesse país - só para ficar em dois aspectos explicitamente materiais. É um desempoderamento generalizado. Assim, só podemos chamar esses negros de fascistas ou censores se esses conceitos forem tão esvaziados que essa assertiva nem fará mais sentido. Na verdade dirá, sim, sobre quem os enuncia. Aliar o cancelamento da peça ao que conhecemos de pior da humanidade (fascismo, censura) mostra que há uma preocupação muito grande com "arte", com expressão artística, com liberdade de criação e de expressão - mas apenas em sua forma "pura". Não é censura que negros sejam preteridos no teatro e nas artes em geral? Não é fascismo que mulheres negras sejam hipersexualizadas e/ou ridicularizadas? Não é um enorme atentado contra a liberdade de expressão que negros sejam minoria nas universidades e na política? Essa preocupação da arte pela arte é preocupação com uma arte branca. Não é injusto que um grupo use a ridicularização da mulher negra em cena? Isso é mais justo que a artista negra que não consegue expor sua arte por ser étnica demais, política demais, agressiva demais - isso para ficar nos adjetivos mais brandos?
 
Ignorar a materialidade das opressões e analisar acontecimentos como se a sociedade fosse um amontoado de pessoas em condições de igualdade é uma violência epistêmica. É violento porque iguala opressão e resistência. Violento porque iguala ódio a raiva. Porque iguala fascismo e antirrascismo. Enfim, porque em nome da camaradagem a retórica destrói os conceitos, manipulando-os a seu bel prazer. A intelectualidade de esquerda precisa ainda se libertar dos seus velhos grilhões ou vai acabar inimiga de quem defende - e vai perceber, afinal, que só defende seus camaradas e a si mesmos. Não há malabarismo teórico-conceitual que dê conta de tornar plausível chamar a resistência do movimento negro num país racista de fascismo ou censura.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Quando pintei meu cabelo de roxo (ou: o que é subversão, afinal?)

Em 2014 assisti a um show de punk na festa de Iemanjá em Salvador em que o vocalista dizia diversas vezes para que as pessoas se insurgissem contra o sistema. Dentre as músicas tocadas, "Silvia", do Camisa de Vênus. Vejam a letra, sério. Uma banda de punk que instigava a subversão tocando uma música cuja letra se resume a degradar a moral de uma mulher e justificar violências por suposta traição. Sem a menor contradição. À época meu cabelo estava mais curto e verde, não que isso tenha qualquer relevância. Talvez o cabelo azul do colega branco e hétero tenha.
cabelo azul e de medusa, acho que temos uma vencedora
Em meados de 2012 eu pintei meu cabelo de roxo. O cabelo era grandinho, eu tinha pouca barba, pintava as unhas de preto e às vezes usava uma saia que uma amiga havia me dado. Por vezes as pessoas erraram meu gênero - ora de maneira tranquila, ora (duas vezes que eu me recorde) de maneira mais violenta. Além disso, era bastante difícil sair na rua sem que alguém chamasse minha atenção (por vezes de modo elogioso, ainda que me desse no saco na maior parte do tempo). Sem entrar muito na minha psiquê, devo dizer que essas coisas me deixavam bastante inquieto - e por vezes agoniado. Confesso que cogitei ser vítima de sexismo e cissexismo. Ainda que isso seja parcialmente verdadeiro (sim, normas de gênero afetam TODAS as pessoas) dizer que eu sofria opressão por ter o cabelo roxo seria no mínimo desonesto (não, normas e especialmente desigualdades de gênero não afetam todas as pessoas da mesma maneira).
oi
Lendo o texto do colega branco e hétero de cabelo azul certos aspectos de sua construção argumentativa me pareceram interessantes. Ele diz como o cabelo azul afetou sua vida de branco e hétero sério e ocupado. E como ele não acha que deva haver problema nenhum em parecer gay. Por último constata que o problema da sociedade é a falta de liberdade. Não poderia haver narrativa mais masculina, branca e hétero! O coitado não consegue conceber que quem dá pinta seja sério/a. Não pensa que o problema que gays enfrentam sejam maiores do que parecer gays e serem zoados por isso. Sua ideia de liberdade é também masculina, branca e hétero: ele quer fazer o que quiser sem que "feministas xiitas" o perturbem (se pusesse dreads ou usasse turbante provavelmente não gostaria que "negros xiitas" o perturbassem). Não existe opressão, só repressão. "Não existe ninguém mais reprimido no mundo do que o homem hétero".
cabeloazulfobia

A postagem do rapaz poderia ser ignorada, mas suas colocações inocentes são um ataque a todas as pessoas pessoas oprimidas (em especial não-homens, não-brancas e não-hétero), a quem subversão é respondida de formas muito mais violentas do que essa concepção estreitada de restrição de liberdade. Para gays, mulheres e negro/as (dentre outros) o buraco é muito mais embaixo: estupro, porrada, assassinato. Queremos liberdade de pintar o cabelo de diversas cores sem sermos zoados, sim. Mas mesmo isso não é tão fácil. Queremos que o cabelo colorido bonito não seja sempre o liso que está na cabeça da pessoa branca. Que mulheres de cabelo colorido não sejam infantilizadas. Que gays de cabelo colorido não sejam espancados porque "ah, tudo bem ser homossexual, mas precisa ser bicha?!". Isso só para ficar no cabelo colorido. Queremos muito mais!
"CHEQUE SEUS PRIVILÉGIOS"
Todo mundo tem problemas. Todo mundo é zoado por algo. Poderíamos ser pessoas mais bacanas com as outras? Devemos! Certamente ignorar opressões e agir de maneira egocêntrica não é uma um bom caminho para começar. Nada contra o colega pintar o cabelo de uma cor diferente, o que não dá é pra se achar o floquinho de neve especial por isso. O que não dá é achar que isso por si só é subversão. E atacar grupos histórica e estruturalmente oprimidos para pagar de descolado. Em resumo: cheque teus privilégios, rapaz!

segunda-feira, 16 de março de 2015

A heterossexualidade é o ópio das massas

O filme todo mundo já viu. Começa com um enredo instigante. Pode ser um super-herói, ou um cientista. Ficção científica ou baseado em fatos reais, tanto faz. A trama segue. E segue. Um flerte! De repente toda a história consiste no garanhão conquistando a gatinha. Seja Romeu e Julieta ou A Culpa é das Estrelas. Pode ser Watchmen e X-men também. Quantos filmes você consegue citar que não sejam, no fim, um romance? Uns mais, uns menos. Inclui uma minoria aqui, outra ali. Às vezes até um homoerotismo rola. Não adianta, o mundo é heterossexual.
TW: heteressoxualidade explícita
Há uma trama subjacente a todas as histórias relevantes: paquerar a mina, pegar a mina, casar com a mina, engravidar a mina, fim. Vivemos os passos dos homens heterossexuais. Ser mulher ou não-hétero é ser o outro. Nossas histórias serão forjadas à força, somente. Um romance homossexual faz um filme gay, um livro gay, um personagem gay. Mas contar os nossos feitos já é futuro, queremos fazer nossos feitos. E há tanto pau, pedra e fim do caminho. Tem xingamento e tem morte. Tem quem queira tirar e quem queira negar direito. Tem quem chame de privilégio e abominação. Tem o "todo mundo é igual".
pode ser hétero e pode ser homo?
Ninguém é igual a ninguém. Só existe homem e mulher. Só existe homem com mulher. Ok, homo tá saindo muito agora, né? H-e-t-e-r-o-s-s-e-x-u-a-l-i-d-a-d-e c-o-m-p-u-l-s-ó-r-i-a chama isso. Tem nada contra desde que não seja sua filha? Também é lesbofobia, meu senhor. Se pode pode, se não pode não pode. E pode ser hétero? Pode. Aliás, DEVE. E pode ser bicha? Desde que não beije, não foda, não incomode, não exista, pode sim. Pode bi? Aí já virou bagunça. Orgia. Disparate.
hein?

É foda. Você sai na rua. Pensa em encarar o moço. E se? Se olhasse mulher poderia até assoviar fiu fiu, ninguém ligaria. Na festinha pode chegar no moço? Seguro só se for festinha gay. Se beijar na rua vai viver ou vai morrer? Ou vai ser preso por atentar ao pudor? Aqui e ali no dia-a-dia vão pressupor heterossexualidade. Privilégio é, mas dói. Deveria ser "mais bicha"? Dando pinta ou não quando souberem de qualquer coisa vão me colocar naquela caixinha rosa ali no canto: frágil. Do canto eu rastejo e apaixono por uma mina. F A K E. CONFUSÃO. VAI PASSAR. Cê que sabe, bróder. Cês sabem de tudo mesmo.
"O mundo heterossexual é uma vida doentia e entediante."
De um lado a força da norma. Suas músicas heterossexuais, suas festas heterossexuais. Dançando o bom rock enquanto bebe a boa cerveja fuma o bom cigarro e chega nas gatinhas. P-e-r-f-o-r-m-a-n-c-e. Peça chata do caralho. De novo. E repete. Mais uma vez. Tá pouco. PA-RA DE SE VI-TI-MI-ZAR. Já me embaralharam as ideias, não dá, desculpa. Quebrou, não tem conserto. E AS NAMORADINHA??? Tio, tia, vô, vó, mãe, pai, primo, prima, afilhado, madrinha, enteada, nora, sobrinho, neto, família, parentesco. Uma hora você tem que ser.
otto - or up with dead people
Do outro lado a força do tapa na cara. TU É VIADO, PORRA? Que vergonha. Que horror. Que seja ao menos como o Ricky Martin. Homossexual pode, viado no pode. Darkroom pode, casar não pode. Apanhar pode, adotar não pode. Curar pode, sexo não pode. Não entendi. OLHA A LÂMPADA. Veja, só esse ano um amigo foi preso por defender casal gay. E dois gays foram assassinados no meu estado. E um colega gay apanhou na rua. Não é querendo pagar de vítima, é SENDO mesmo. Se fizer uma pose assim pode? Se minha voz for assim pode? Pode viver ou é pra morrer? Pode ser gay, pode ser lésbica e pode ser bi? Desde que seja tudo bem hétero. E que não seja também. E ai de quem for. E de quem não for. VIADO. E morreu.
y tu mamá también
Um filme. Os amigos saem de viagem com uma mulher. Muito amigos, NO HOMO. Várias experiências, NO HOMO! De repente o sexo flui - dos dois com a mulher, não entre si, NO HOMO!!! E aí o amigo beija o outro amigo, NO HOMO? E você entende que os dois se amam, se desejam... HOMO? Voltam pra casa e nunca mais se falam. Afinal, que coisa, todo mundo nasce hétero. É normal ser hétero. Não iam agora "se descobrir" bichas. Nem "escolher ser".  Homem-com-mulher é todo afeto que existe por aí? Pinto-na-buceta é todo sexo que existe por aí? Tem que ter pinto sempre? Todo sexo é genital? Meça suas intimidades, parça.
recebi uma ligação do marx e ele disse que:
Você não cria um regime político, uma estrutura de poder; você não violenta física e psicologicamente; você não destrói uma pessoa, põe suas armas na cabeça dela e diz que ela tem escolha. A heterossexualidade é compulsória, não é apenas uma sexualidade. Para algumas pessoas é natural ser heterossexual. Para outras é apenas normal ser heterossexual. Para umas ainda pode não ser heterossexual, mas eu sou. A heterossexualidade é o ópio das massas (inclusive as cheirosas). Na bíblia Marx diz isso da religião porque ela amansa e distrai os trabalhadores. Com religião não tem revolução. Com heterossexualidade também não. Eu vejo o coleguinha de esquerda assediando as "companheiras" e penso: é isso sua revolução? Agora fiquei puto e não concluí.