quinta-feira, 14 de maio de 2015

NEGROS FASCISTAS

 
Uma peça de teatro foi cancelada após pressão do movimento negro contra o uso do blackface. Podemos ler: uma peça foi censurada por um grupo que não gostou do seu conteúdo. E podemos ler: o movimento negro combateu o racismo. As duas coisas aconteceram. O posicionamento que se toma diz respeito mais a suas prioridades do que sobre o acontecido.

Muitos artistas foram logo naquilo que os tocava: o cancelamento de uma peça porque alguém não gostou do que iria ser encenado. Não foi exatamente uma surpresa. O que impressiona é que intelectuais de esquerda tenham chamado de fascismo e censura o cancelamento. Impressona mais, talvez, porque o que se espera de análises de esquerda é que levem em consideração a materialidade.

Chamar de fascismo ou censura o que aconteceu é menos descrever a realidade do que imputar valores sobre o fato. Podemos chamar ocupações do MST de invasões, são duas palavras para o mesmo acontecido. Mas cada uma mostra uma tomada de posicionamento. Ou achamos que o MST fez algo de errado ou achamos que fez justiça. Espera-se que uma análise de esquerda chame de ocupação e veja como justiça porque entende a materialidade do contexto: a reforma agrária não acontece, a concentração de terras é imensa. Invadir (errado) é ocupar (certo). O que numa análise sem contexto aparece como violência, numa análise materialista aparece como justiça.

Fascismo, enquanto história passada, nos remete a Mussolini e de certo modo ao nazismo de Hitler. Dentre aspectos importantes, o controle do Estado (e do exército) foi o que deu a dimensão do fascismo. Na Alemanha o controle do Estado aliado a uma ideologia eugenista deu origem ao holocausto. No presente falamos em "neonazismo" quando grupos de brancos perseguem minorias (politicamente falando) raciais/étnicas. Dizemos que a polícia é fascista quando, por ser braço amardo do Estado, ela atenta contra a população desempoderada - geralmente negra e/ou pobre.

Censura, enquanto experiência histórica, encontramos especialmente durante a ditadura militar no Brasil. De novo: Estado, exército. Usamos "censura" de forma séria quando pessoas despojadas de poderes (políticos e econômicos, especialmente) são impossibilitadas de falar. Tendo a crer que nem defensores liberais da liberdade de expressão tão ferrenhos como Stuart Mill pudessem encarar luta contra discurso de ódio como censura, por exemplo.

Só podemos falar em "fascismo" ou "censura" como ataque ou silenciamento no geral se apagarmos toda a história, todo o contexto, toda a materialidade por trás de tais conceitos. Uma mãe é fascista quando grita com o filho e censora quando o proíbe de falar enquanto há visitas na sala. Aniquilamos, então, ambos os conceitos, porque na verdade eles podem expressar qualquer relação.

Chamar de fascismo e censura a pressão que o movimento negro fez para o cancelamento da peça que utilizaria blackface é esquecer que o racismo existe. O racismo existe, a população negra não controla nem o Estado, nem o exército, nem a polícia. Pessoas negras são as mais pobres e as mais assassinadas nesse país - só para ficar em dois aspectos explicitamente materiais. É um desempoderamento generalizado. Assim, só podemos chamar esses negros de fascistas ou censores se esses conceitos forem tão esvaziados que essa assertiva nem fará mais sentido. Na verdade dirá, sim, sobre quem os enuncia. Aliar o cancelamento da peça ao que conhecemos de pior da humanidade (fascismo, censura) mostra que há uma preocupação muito grande com "arte", com expressão artística, com liberdade de criação e de expressão - mas apenas em sua forma "pura". Não é censura que negros sejam preteridos no teatro e nas artes em geral? Não é fascismo que mulheres negras sejam hipersexualizadas e/ou ridicularizadas? Não é um enorme atentado contra a liberdade de expressão que negros sejam minoria nas universidades e na política? Essa preocupação da arte pela arte é preocupação com uma arte branca. Não é injusto que um grupo use a ridicularização da mulher negra em cena? Isso é mais justo que a artista negra que não consegue expor sua arte por ser étnica demais, política demais, agressiva demais - isso para ficar nos adjetivos mais brandos?
 
Ignorar a materialidade das opressões e analisar acontecimentos como se a sociedade fosse um amontoado de pessoas em condições de igualdade é uma violência epistêmica. É violento porque iguala opressão e resistência. Violento porque iguala ódio a raiva. Porque iguala fascismo e antirrascismo. Enfim, porque em nome da camaradagem a retórica destrói os conceitos, manipulando-os a seu bel prazer. A intelectualidade de esquerda precisa ainda se libertar dos seus velhos grilhões ou vai acabar inimiga de quem defende - e vai perceber, afinal, que só defende seus camaradas e a si mesmos. Não há malabarismo teórico-conceitual que dê conta de tornar plausível chamar a resistência do movimento negro num país racista de fascismo ou censura.