quarta-feira, 29 de abril de 2015

Quando pintei meu cabelo de roxo (ou: o que é subversão, afinal?)

Em 2014 assisti a um show de punk na festa de Iemanjá em Salvador em que o vocalista dizia diversas vezes para que as pessoas se insurgissem contra o sistema. Dentre as músicas tocadas, "Silvia", do Camisa de Vênus. Vejam a letra, sério. Uma banda de punk que instigava a subversão tocando uma música cuja letra se resume a degradar a moral de uma mulher e justificar violências por suposta traição. Sem a menor contradição. À época meu cabelo estava mais curto e verde, não que isso tenha qualquer relevância. Talvez o cabelo azul do colega branco e hétero tenha.
cabelo azul e de medusa, acho que temos uma vencedora
Em meados de 2012 eu pintei meu cabelo de roxo. O cabelo era grandinho, eu tinha pouca barba, pintava as unhas de preto e às vezes usava uma saia que uma amiga havia me dado. Por vezes as pessoas erraram meu gênero - ora de maneira tranquila, ora (duas vezes que eu me recorde) de maneira mais violenta. Além disso, era bastante difícil sair na rua sem que alguém chamasse minha atenção (por vezes de modo elogioso, ainda que me desse no saco na maior parte do tempo). Sem entrar muito na minha psiquê, devo dizer que essas coisas me deixavam bastante inquieto - e por vezes agoniado. Confesso que cogitei ser vítima de sexismo e cissexismo. Ainda que isso seja parcialmente verdadeiro (sim, normas de gênero afetam TODAS as pessoas) dizer que eu sofria opressão por ter o cabelo roxo seria no mínimo desonesto (não, normas e especialmente desigualdades de gênero não afetam todas as pessoas da mesma maneira).
oi
Lendo o texto do colega branco e hétero de cabelo azul certos aspectos de sua construção argumentativa me pareceram interessantes. Ele diz como o cabelo azul afetou sua vida de branco e hétero sério e ocupado. E como ele não acha que deva haver problema nenhum em parecer gay. Por último constata que o problema da sociedade é a falta de liberdade. Não poderia haver narrativa mais masculina, branca e hétero! O coitado não consegue conceber que quem dá pinta seja sério/a. Não pensa que o problema que gays enfrentam sejam maiores do que parecer gays e serem zoados por isso. Sua ideia de liberdade é também masculina, branca e hétero: ele quer fazer o que quiser sem que "feministas xiitas" o perturbem (se pusesse dreads ou usasse turbante provavelmente não gostaria que "negros xiitas" o perturbassem). Não existe opressão, só repressão. "Não existe ninguém mais reprimido no mundo do que o homem hétero".
cabeloazulfobia

A postagem do rapaz poderia ser ignorada, mas suas colocações inocentes são um ataque a todas as pessoas pessoas oprimidas (em especial não-homens, não-brancas e não-hétero), a quem subversão é respondida de formas muito mais violentas do que essa concepção estreitada de restrição de liberdade. Para gays, mulheres e negro/as (dentre outros) o buraco é muito mais embaixo: estupro, porrada, assassinato. Queremos liberdade de pintar o cabelo de diversas cores sem sermos zoados, sim. Mas mesmo isso não é tão fácil. Queremos que o cabelo colorido bonito não seja sempre o liso que está na cabeça da pessoa branca. Que mulheres de cabelo colorido não sejam infantilizadas. Que gays de cabelo colorido não sejam espancados porque "ah, tudo bem ser homossexual, mas precisa ser bicha?!". Isso só para ficar no cabelo colorido. Queremos muito mais!
"CHEQUE SEUS PRIVILÉGIOS"
Todo mundo tem problemas. Todo mundo é zoado por algo. Poderíamos ser pessoas mais bacanas com as outras? Devemos! Certamente ignorar opressões e agir de maneira egocêntrica não é uma um bom caminho para começar. Nada contra o colega pintar o cabelo de uma cor diferente, o que não dá é pra se achar o floquinho de neve especial por isso. O que não dá é achar que isso por si só é subversão. E atacar grupos histórica e estruturalmente oprimidos para pagar de descolado. Em resumo: cheque teus privilégios, rapaz!