Imagine você tendo assistido, ainda criança, ao desenrolar da Primeira Guerra Mundial. Imagine agora que você é um alemão (de origem judia) observando a ascensão do nazismo e o início da Segunda Guerra Mundial. Pelo rádio chegam as palavras do Führer a cada domicílio. E a suástica se multiplica pelas ruas. É nesse clima que Theodor Adorno e Max Horkheimer escrevem (e publicam) "A Dialética do Esclarecimento", em 1944. Desde então "Indústria cultural" tem sido expressão recorrente para designar o esvaziamento de conteúdo das relações sociais. O objetivo desse texto será uma crítica a esse conceito, tanto na lógica interna à obra original, como nos usos corriqueiros desta abordagem.
De saída é importante pontuar que existe uma indústria cultural; isso é inegável. Existe uma produção em larga escala de "bens culturais" (consideremos aqui "cultura" num sentido mais restrito que o concebido pela Antropologia): filmes saem aos montes de Hollywood, existe todo um mercado literário que escoa gêneros como auto-ajuda e trilogias infanto-juvenis, sem contar com as grandes gravadoras em busca da batida perfeita. Existem os empresários, os conglomerados, a produção racionalizada, o estabelecimento de metas, a adequação dos produtos ao mercado e assim por diante. Se alguém não se convenceu ainda de que há uma indústria cultural operante recomendo esse Profissão Repórter sobre como a indústria do sertanejo investe milhões na produção de carreiras de sucesso. Se de fato existe uma indústria cultural, qual é o problema de Adorno e Horkheimer?
No texto que consolidou a expressão os autores adotam, na maior parte do tempo, um tom nihilista. Você termina a leitura sem saber muito bem o que fazer, afinal todas as possibilidades de emancipação estão em franco processo de degradação no curso do capitalismo tardio. Parece uma crítica rasa, mas é o início do descompasso com o próprio materialismo histórico dialético. Se não há possibilidade de mudança a partir das condições materiais de uma época, não há nem dialética, nem história. Se a razão está fadada à captura pela instumentalização própria do capitalismo, não pode haver consciência de classe; logo não pode haver revolução. Jürgen Habermas, um colega frankfurtiano da dupla supracitada, tenta separar o joio do trigo, dizendo que há razão instrumental, mas há também razão comunicativa. Hannah Arendt também acredita que a reflexão pode enfrentar a banalidade do mal. Todavia na década de 40 nossos companheiros acreditavam que a propaganda havia destruído o raciocínio. Afinal, que dizer de uma juventude que se deixava seduzir por Hitler e pelo jazz?
todo interesse é capitalizável |
Se a associação de jazz ao nazismo soou estranha, podemos passar ao próximo ponto. Adorno concebe muito bem que a indústria cultural não só produz afirmações explícitas da conservação da realidade, mas sua própria crítica. Pode-se comprar um pacote (ticket, no original) conservador, como um pacote revolucionário. De algum modo, entretanto, o autor parece não perceber que seu desdém pelo jazz e pelo gosto das pessoas não o deixariam fora dessa indústria. Que seja dito que por Adorno não apresentar saídas fica difícil saber exatamente o que ele defende. O uso que se faz costumeiramente (e que é possível) do conceito de indústria cultural é sua contraposição como constituição de uma vanguarda (intelectual, cultural, política). Não é por menos que o esquerdismo se tornou um estilo de vida (não ausentado a crítica aos partidos de esquerda que compram essas ideias, obviamente). No Brasil isso se cristaliza com a produção de ícones da boa cultura (Tom Jobim, Toquinho e companhia) ou da contracultura (vide Chico e Caetano), dos bons filmes, dos livros clássicos. Se levarmos a sério o tema que Adorno levanta, ou pensarmos na análise de Bourdieu de como os gostos produzem distinção social, a constituição de uma vanguarda, que conseguiria fazer a crítica certa, não é menos ideológica.
Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo, Salvador Dalí, 1943 |
o povo não pensa, eles disseram |
O caminho para a mudança deve começar com a abolição da abordagem auto-centrada que aponta "fascistas" e "coxinhas" e corre para abrigo, como se uma bomba de escárnio pudesse conter o avanço do conservadorismo nesse país. O contrário do esvaziamento das relações sociais não é o distanciamento egoísta que cria bolhas de satisfação, mas o envolvimento comunicativo na realidade tal como ela se apresenta. Não se muda o mundo sem sujar as mãos de realidade; não se mudam opiniões sem contaminar-se do outro. Não adianta atacar propaganda apenas com mais propaganda, porque nesse jogo quem detém o poder (econômico) já ganhou. Devemos fortalecer nossa capacidade de argumentar, nas relações concretas, que essa realidade nos oprime e quem nos oprime tem gênero, raça e classe, assim como interesses bem definidos. Definitivamente, sem diálogo não há dialética.